Turista de quintal
Estou num quarto com a parede cheia de retratos. Eles estão dispostos mais ou menos assim1:
São, na esquerda, um mapa da cidade; no centro, uma foto da fachada do cine guarani, uma foto do mercado público (em toda sua glória alaranjada), e uma foto do Monumento a Júlio de Castilhos. Na direita, uma foto dos prédios ao longo da orla do Guaíba, com o antigo prédio do INSS em destaque.
Eu conheço esses lugares. Vendo eles mobiliarem um quarto pensado pra turista, são como estranhos. Eu já vi todos eles, mas não assim.
Olho pro mapa e penso na apreensão que eu senti atualizando o google maps durante a enchente, vendo a cor das regiões mudar pra vermelho escuro conforme o nível da água subia.
Um pequeno pontinho vermelho sobreposto no vidro do mapa marca onde eu estou, e a minha mente coloca outros nas partes que eu morei. Será que chegou água aqui? Lá sim, eu lembro.
A calçada da praça da alfândega, que em meados de 1910 já era frequentada por gente indo ver filme, pra mim não tem o cine guarani ao lado do imperial. Pra mim tem uma fachada com tapume, sinal de uma reforma que não acaba.
Foi ali que eu conheci os punks, um grupo de peruanos que trocaram um latão de Eisenbahn em uma zine sobre liberação sexual e uso de software livre.
Foi ali que eu matei tempo depois do almoço vendo pessoas jogarem damas com tampas de garrafa pet, enquanto eu esperava acabar o intervalo no escritório que era na rua da praia.
De certa forma eu tive, tanto quanto as pessoas da foto, doses cinematográficas de entretenimento e reflexão. Onde foram atuações e tramas, são agora pessoas, vivências e pichos alternados com propagandas nas muretas da obra.
O quarto é um safari e cada quadro é um bicho exótico extinto, salvo em cativeiro.
O lindo prédio do INSS, com apenas poucas janelas quebradas na época, agora sobrevive uma ocupação em andamento pelo MTST. Um exemplo de simbiose em uma cidade que passa por uma seleção natural naquilo que é artificial. A paisagem da capital apodrece, mas se renova.
Eu vejo isso de fora e de dentro. Enquanto eu andava lá fora, na rua, eu via de dentro. Agora, de dentro do quarto, enxergo com os olhos de fora. Confronto o turismo com o cotidiano. Porto alegre é o meu quintal, e eu a desconheço.
Ok na verdade a parede é assim: https://i.ibb.co/cXxm3yQP/photo-5028452753181093372-y.jpg↩